Na mais antiga lembrança política que tenho, Sarney já era presidente. Parece irreal demais, portanto, pensar que nasci nos últimos anos da ditadura militar. Parece distante demais.
Lembro da fascinação com que eu ouvia meus pais contando sobre aquele período negro porém tão próximo (para eles) da nossa história. Sobre como meu avô fugira diversas vezes para Blumenau, para queimar ou enterrar livros, ou simplesmente para se esconder por uns tempos, temendo ser taxado de comunista devido à sua sede literária. Sobre como todos duvidavam de seus amigos mais íntimos, e evitavam propositalmente formularem pensamento próprio ou mesmo, e principalmente, expô-los; pois qualquer um poderia ser um espião da ditadura. Sobre como vivam todos numa paranóia constante e num estado insuportável de auto-ignorância.
Meus pais. Meus pais e sua participação, mesmo que passiva, no período mais repulsivo da história recente do Brasil.
Hoje vejo na televisão pessoas como Michael Moore, comediante e inimigo declarado de George Bush Filho, sendo censurados por suas idéias anti-guerra. Não pude conter a minha felicidade ao vê-lo no palco, reunido com as outras pessoas que concorreram com ele ao Oscar de Melhor Documentário Longa-Metragem, e dizendo "Optamos por retratar a realidade, pois somos pessoas reais vivendo num mundo fictício; onde um líder fictício vence uma eleição fictícia e nos leva a uma guerra fictícia por motivos fictícios (...)".
Soa a música tema da Academia, Moore apressa o seu discurso e agradece, sob um misto de vaias e aplausos tímidos. A câmera mostra muitos rostos, a maioria deles sorridentes, apoiando silenciosamente ao protesto, provavelmente temerosos de assumirem uma postura determinada e as consequências que esta postura acarreta.
sei pouco do Senhor Michael Moore, do seu trabalho ou mesmo do seu caráter. Mas hoje ele se tornou meu ídolo. Não por suas opiniões particulares (uma pessoa não deve ser elogiada em demasia por pensar coerentemente, mas sim incentivada por isso) mas pela sua atitude ímpar, num período marcante da história da humanidade. A primeira grande guerra do século vinte e um, e a primeira grande demonstração do descaso dos governantes das grandes potências para com o resto do mundo, incluindo sua própria população.
A CNN americana pouco mostra do conflito, a não ser os sucessos dos ataques das tropas aliadas, enquanto acompanhamos ao vivo os mortos e feridos - de ambos os lados - pelas redes RTP e Al Jazira, retransmitidas por diversas redes nacionais. Morre um correspondente da ITV. Morrem soldados americanos de reconhecimento urbano. Morrem dezenas de civis iraquianos.
E todos nós participamos, mesmo que passivamente, deste marco da história das civilizações. Em no máximo vinte anos, nossos filhos estarão aprendendo sobre esta guerra do mesmo modo que nos foi ensinado nas escolas sobre a primeira e a segunda guerras mundiais. E da mesma maneira que nós, ao ouvirmos nossos pais, eles também ficarão boquiabertos ao saberem que assistimos a tudo do início ao fim, ao vivo e a cores, pela televisão e internet.
- Felipe Meyer
- Publicitário, redator e pseudo-quadrinhista. Ser humano do gênero masculino mais perto dos 30 que dos 20. Gestor de conteúdo do Jornal de Debates. Formado em Comunicação Social pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Casado, pai de uma linda coleção de revistas em quadrinhos, exilado de Florianópolis e tentando fazer a vida em São Paulo, na Auszuglândia.
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