Mais uma vez o copo passou por mim. Minha religião não permite, eu disse, brincando. Ao meu lado, Raul Gil falava sem parar sobre O Cobrador, livro de sei lá quem, e como as situações descritas nele podem acontecer de verdade, com qualquer um. Bum, ele dizia, te matei pra pagar o algodão doce que eu não tive. Bum, te matei pra pagar o balão que não me compraram. E eu permanecia ali, fingindo uma cara de entendedor e interessado pelas palavras apressadas às quais eu já nem mais ouvia. À essa altura minha atenção já estava voltada para a garota sentada um ou dois degraus abaixo de mim. Seus seios pequenos e perfeitos ameaçando saltar para fora da blusa, duas bolas de tênis presas ao peito sem muito cuidado, criando um contraste impossível de se ignorar, assim como o nariz pequeno que era a única coisa bela naquele rosto de não mais que quinze anos. O copo passou de novo. Deus condena, brinquei outra vez. Aproveitei uma aproximação de Raul gil à garotinha de seios redondos, nariz pequeno e rosto feio para tomar ação contrária e me distanciar daquela conversa indesejada. Da panela para o fogo, fui cair nas divagações de Paulo, que sentado sobre o corrimão mantinha-se equilibrado por apenas um pé. Tentei chamar a atenção de Guilherme, a única pessoa que poderia explicar minha insistência em permanecer naquele ambiente incômodo de bobagens mascaradas de cultura e puro alcoolismo juvenil; mas ele só tinha olhos e ouvidos voltados para Ana, sua namorada. O copo passou mais uma vez e evitei repetir a brincadeira, já sem graça alguma, enquanto evitava o olhar de um outro indivíduo, sentado vários degraus abaixo. Era nele, na verdade, que meus pensamentos se concentravam, apesar de tudo. A idéia de que ele pudesse ter infectado Janine - minha ex-namorada - perambulava todos os cantos de minha mente. E a raiva de não poder fazer nada caso a possibiliade viesse a se comprovar uma realidade, apesar de toda a agressão física que eu era capaz de causar como punição a alguém que me inspirava tamanho ódio e desprezo... Essa raiva, essa certeza da minha impotência... Foi o que me manteve sentado, e calado.
- Felipe Meyer
- Publicitário, redator e pseudo-quadrinhista. Ser humano do gênero masculino mais perto dos 30 que dos 20. Gestor de conteúdo do Jornal de Debates. Formado em Comunicação Social pela Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina. Casado, pai de uma linda coleção de revistas em quadrinhos, exilado de Florianópolis e tentando fazer a vida em São Paulo, na Auszuglândia.
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