Mais uma vez o copo passou por mim. Minha religião não permite, eu disse, brincando. Ao meu lado, Raul Gil falava sem parar sobre O Cobrador, livro de sei lá quem, e como as situações descritas nele podem acontecer de verdade, com qualquer um. Bum, ele dizia, te matei pra pagar o algodão doce que eu não tive. Bum, te matei pra pagar o balão que não me compraram. E eu permanecia ali, fingindo uma cara de entendedor e interessado pelas palavras apressadas às quais eu já nem mais ouvia. À essa altura minha atenção já estava voltada para a garota sentada um ou dois degraus abaixo de mim. Seus seios pequenos e perfeitos ameaçando saltar para fora da blusa, duas bolas de tênis presas ao peito sem muito cuidado, criando um contraste impossível de se ignorar, assim como o nariz pequeno que era a única coisa bela naquele rosto de não mais que quinze anos. O copo passou de novo. Deus condena, brinquei outra vez. Aproveitei uma aproximação de Raul gil à garotinha de seios redondos, nariz pequeno e rosto feio para tomar ação contrária e me distanciar daquela conversa indesejada. Da panela para o fogo, fui cair nas divagações de Paulo, que sentado sobre o corrimão mantinha-se equilibrado por apenas um pé. Tentei chamar a atenção de Guilherme, a única pessoa que poderia explicar minha insistência em permanecer naquele ambiente incômodo de bobagens mascaradas de cultura e puro alcoolismo juvenil; mas ele só tinha olhos e ouvidos voltados para Ana, sua namorada. O copo passou mais uma vez e evitei repetir a brincadeira, já sem graça alguma, enquanto evitava o olhar de um outro indivíduo, sentado vários degraus abaixo. Era nele, na verdade, que meus pensamentos se concentravam, apesar de tudo. A idéia de que ele pudesse ter infectado Janine - minha ex-namorada - perambulava todos os cantos de minha mente. E a raiva de não poder fazer nada caso a possibiliade viesse a se comprovar uma realidade, apesar de toda a agressão física que eu era capaz de causar como punição a alguém que me inspirava tamanho ódio e desprezo... Essa raiva, essa certeza da minha impotência... Foi o que me manteve sentado, e calado.

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