Passam das dez e eu ainda não dormi. Na verdade, está cada vez mais perto das onze do que das dez. Dezesseis horas acordado e contando. Deitei na cama da minha mãe. Um lugar menos abafado (em comparação ao meu quarto, sempre de janela e persiana fechadas, além de roupas imundas e calçados mal-lavados espalhados pelo chão, em grande parte por culpa do meu irmão - tanto as roupas quanto a janela), e onde existia uma boa chance de minha mãe me cutucar no início da tarde pra desocupar o lugar dela. Melhor do que despertador, por certo.
Peguei um livro. Eu sei que já o li. Mas não lembro de tê-lo lido inteiro. Sei que já o li inteiro, sim. Apenas não lembro. Eu havia pego o livro antes, no meio da madrugada. Revirei entre papéis velhos no meu eternamente desarrumado guarda-roupas, encontrei o livro logo no início da busca. Coloquei-o sobre a mesinha e voltei ao computador. Não que eu quisesse ler o livro novamente, ou mesmo pensasse em lê-lo depois. Acho que só queria saber onde estava. Por causa de uma frase, uma frase idiota, perdida no meio do livro e sem grande importância. Algo sobre gatos.
Deitei na cama da minha mãe, ou melhor, sentei-me apoiado na parede. Uma cama magnífica: alta, larga, com um colchão de molas. Perfeita pra foder durante horas sem parar, coisa que obviamente minha mãe - viúva, na menopausa e viciada em toneladas de remédios que apagam totalmente a sua libido - não fez, mas que eu não perderei a chance de fazer ainda.Uma cama tão perfeita, e sem um maldito encosto, sem uma maldita cabeceira. Encostei-me na parede.
Comecei a ler por volta da página trinta, talvez uma página antes. Eu sabia que tinha lido até o final. Não lembrava, mas sabia. Não tinha por que começar tudo de novo. Escolhi um ponto aleatório, ligeiramente no começo, porém já mais perto da metade. Passando algumas páginas, lá estava a frase, na página trinta e seis: "Na minha próxima vida, quero ser um gato. Dormir 20 horas por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu." Certo. É mas de uma frase. É Bukowski. "O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio". Textos selecionados do diário dele. Diz na quarta capa que contam o dia a dia do velho safado até poucos dias antes de sua morte. Diz também que ele morreu em noventa e quatro. O último texto é de fevereiro de noventa e três.
Parei depois da página setenta. Tentei dormir. Não consegui. Senti vontade de escrever alguma coisa, e cá estou eu. Provavelmente estou com uma sobrecarga "bukowskiana", mas isso sempre acontece. Sofro de uma espécie de "mimetismo de comunicação", como da vez em que voltei do Rio de Janeiro e meses depois algumas pessoas ainda me perguntavam se eu era carioca, pelo sotaque. Vale lembrar que fiquei três dias na cidade maravilhosa. Quando terminei de ler "O Cemitério", de Stephen King, devo ter escrito um ou dois micro-contos carregados de vírgulas e detalhes minuciosos sem pausas num mesmo parágrafo. Acontece sempre.
Na capa do livro diz "Presunto, fica com o livro. Um abraço. tchau. Lé." Curto e objetivo. Odeio dedicatórias de falsos-poetas que tentam lembrar de alguma frase de efeito que vá impressionar o amigo ou a namorada pra quem estão dando tal livro de presente. "Agora ele é teu" é algo tão mais simples e compreensível (principalmente pra quem escreve a dedicatória). Escritores em sessões de autógrafos deveriam escrever "Você tem um livro meu autografado. Venda pelo ebay".
É uma boa dedicatória. Se um dia eu tiver um corretivo à mão e lembrar do livro, vou apagá-la. Não gosto de lembrar quem me deu o livro. O tipo de cara que você se dá bem na primeira vez que cruza, no meio da noite, você tão bêbado quanto ele. Amizade instantânea, só precisa adicionar água. O tipo de cara que coloca quatro páginas de uma HQ do Crumb dobradas dentro do livro, pois sabe que você adora o cara. Um cara tão gente boa, que você briga com ele pelo motivo mais estúpido do mundo: uma mulher.
Todo homem conhece e acredita em frases batidas que dizem que você não deve colocar uma mulher à frente de uma amizade, mas todo homem acaba mordendo a própria língua quando o assunto vem à tona. E foi o que aconteceu naquela vez. Eu estava sentado na escadaria, em frente ao bar, quando vi essa mulher linda, com um sorriso gigante colado na cara. Parecia mentira. Um sorriso lindo e vivo como aquele não podia ser de verdade. Eu puxei conversa, interroguei amigos dela, descobri tudo o que pude. Gosto musical, signo, ambições de carreira (Pink Floyd, peixes, psicologia). O tipo de coisa que eu nunca fiz pra conquistar uma mulher. Demorei umas boas semanas pra ter a chance perfeita. Mas pro meu azar, essa chance surgiu no mesmo dia em que o Lé resolveu disputar a mulher comigo.
Entendam... Quando dois amigos querem a mesma garota, a regra geral seria esconder os seus sentimentos em favor do seu amigo do peito. A preferência é que ele faça isso primeiro. Se não o fizer, a lei é que vença o melhor, mas sem jogo sujo. Perguntar sobre a sua namorada em voz alta, no momento exato em que sua boca está a meio centímetro da boca da garota que está sentada no seu colo, é exatamente o tipo de jogo sujo que eu estou falando, e que o seu amigo não deveria fazer. Um "eu não acredito" é o complemento perfeito para tornar a sua noite um desastre total depois que ela se levanta e sai abraçada com o seu "amigo". Pior ainda, se você nem estiver namorando.
Compreendam. Eu tinha, e não tinha, uma namorada. Na verdade não tinha. Ela tinha um namorado. Ou não. Não consigo me lembrar se a essa altura já tínhamos nos livrado do bizarro triângulo amoroso que envolvia a nós dois e o namorado gay-deprimido-que-não-queria-admitir-para-o-pai-que-dava-a-bunda. O fato é que parar naquele momento para tecer longas explicações sobre a natureza do meu relacionamento é algo que poderia piorar e muito a minha situação, principalmente no estado semi-catatônico em que me encontrei durante os vinte ou trinta segundos seguintes. Quando acordei do coma, tive tempo de gritar um grande FILHADAPUTA, mas os dois já estavam longe, a caminho da casa dela.
Ele voltou. Me encontrou bêbado no sofá, e deve ter ficado feliz com isso, por pensar que assim eu aceitaria mais fácil as suas desculpas. Ledo engano. Queria que se fodesse o fato de ele estar de mudança para a Alemanha no dia seguinte. Tinha vontade de rir com a declaração de que depois disso ela era toda minha. Mandei-o tomar no cu quantas vezes me foi possível antes da voz engasgar. Acendi um cigarro e devo ter fumado metade dele numa tragada só. Deixei claro que ali terminava nossa amizade e que ele não precisava escrever da Alemanha.
Fui encontrá-lo quase dois anos depois, numa festa rave. A mesma em que encontrei o Windblow, Decca e Jonathan. Ele continuava o mesmo anão de sempre, apesar da impressão que eu tinha dele estar menor. A Alemanha encolhe as pessoas? Ele me cumprimentou umas três vezes, mais pelo fato de eu ter companhias femininas do que por uma grande saudade que podia estar sentido. Tentou me abraçar, eu fingi que não percebi. Virei para o lado e comecei a conversar com a Karina. Estava dançando com duas amigas quando ele se aproximou de novo, com um amigo. Os dois dançavam incrivelmente mal, e davam voltas em torno de nós três, sem tirar os olhos das minhas amigas. Beijei uma delas. Os dois foram embora. Quando a beijada foi ao banheiro, eles voltaram. Abracei-a e creio ter tocado com a boca nos lábios dela, de leve. Foram embora de novo. Quando as duas estavam juntas dançando, de novo, uma delas me perguntou: "Quem é o anão maluco?"

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